quarta-feira, 21 de abril de 2010

da série aprendendo a ser só


Eu acreditei que seria até a morte, que nada, além da morte, acabaria com esse amor. Onze anos de casamento e nenhum filho. O sonho de ser pai sempre esteve presente, como um fantasma que rondava pelos cantos da nossa casa. Eu tantas vezes maldisse meu corpo, meu ventre e minha feminilidade por não dar ao meu homem o que ele tanto queria. Um filho! É pra isso que um corpo de mulher é feito! Que mulher sou eu que não posso gerar um filho? Sou mulher, a sua mulher e vc é meu, meu homem... Só nós dois e ninguém mais... Nenhum filho.

Agora esse fantasma me persegue dentro de mim, nos meus pensamentos, nos meus pesadelos e no fim do nosso casamento... 48 anos, prazo de validade vencido, é definitivo! Me sinto cercada, acuada, sem saída. Só me resta ir embora. Largar onze anos de vida, onze anos de história, onze!

Ai minha mãe! Que morreu com a minha idade de dor de amor! Mãe, dai-me a força que não encontro, não sei se tenho. Ilumina os meus passos no recomeço de uma vida tardia. Qual direção tomar? Pra onde devo ir? Estou prestes a destruir a minha casa e ficar ao relento, sozinha na imensidão do mundo. Preciso caminhar em direção ao meu coração e descobrir a proteção de um teto novo, que me acolha até a tempestade passar. Preciso, eu mesma, me abrigar da fúria do destino, desse vendaval que sopra levando cada pedacinho construído com tanto amor de onze anos de vida.

Paralisada, contemplando a destruição de mim mesma e, sem saída, parar e parar e olhar, contemplar. Dou adeus a cada parte e estremeço quando vejo o fim inevitável, falta pouco pra voar.

Como se faz isso, mãe? Como se aprende novamente a andar com meus pés, a tomar as minhas decisões sem os braços desse homem, que ainda amo, pesando, confortando, sobre meu corpo enquanto durmo? Existe saída pro renascimento depois de uma morte violenta?

Estou fragilizada e desamparada. Um corpo estendido no chão de uma casa abandonada em posição fetal. Espero que uma luz divina entre pelos buracos no alto e arranque do meu corpo essa dor que me consome. É preciso se reerguer, preciso me levantar e comer, mas não aguento o peso de meu corpo, não sei mais como ele funciona. Perdi o manual dessa máquina abandonada de matéria condensada. Meus movimentos já não me pertencem e não sei como me vejo caminhando pelas ruas sem destino, por uma cidade que não reconheço mais.

Passo a passo, meus pés caminham sozinhos, não me dizem onde me levam e apenas deixo que me levem.

Como pode que esse dia tenha chegado? Se me vi tantas vezes em idades avançadas com vc ao meu lado, em coisas banais de velhice, do cotidiano de quem passou uma vida junto. Como pode vc agora vir me falar de vôos mais altos, de novas experiências onde eu não participo, não faço parte. Como pode vc não me reconhecer e me falar de separação? Não sabe mais quem sou eu? Com qualquer outra vc poderia falar assim... Mas eu sou aquela que te conhece como nem mesmo vc se conhece, aquela que respira o ar que vc não quer mais quando dorme. Sou aquela que dorme embriagada pelo seu hálito adormecido. Sou aquela que não sabe mais viver sem vc. Sou eu, essa mulher pesada, se arrastando pelas ruas de uma cidade estrangeira, sem destino, sem controle, sem lembranças de mim antes de vc, sem a menor idéia da mulher que fui ou posso ser.

Mãe! Vc está me ouvindo? Me coloca no seu colo, preciso dormir, preciso de paz. Mãe, seu amor consumiu o seu corpo e buscou a morte com 48 anos. Será esse o destino das mulheres da nossa família? Uma espécie de karma de gerações? Estarão meus pés me levando ao seu encontro? Já não sei mais onde estou.

Não posso, não quero! O resto de lucidez que ainda possuo me faz desejar a vida e um átimo de esperança que me resta me faz sonhar, mesmo que por segundos, com um dia melhor. Acredito que tenho um poder de mulher, que acompanha todas as gerações de bruxas pela história do mundo. Mesmo que esse poder não apareça mais em nenhum sol de dia, ou em nenhuma noite de lua, mesmo assim, essas mulheres não abandonam uma filha indefesa e sopram seus cantos nos meus ouvidos, até que eu possa recuperar a audição. Sopram, com paciência feminina, palavras de amor e esperança até me fazerem dançar a dança do universo que só as mulheres conhecem.

Ah mãe! Agora silêncio! Que eu entregue esse corpo estranho aos braços das horas e que ele descanse pra mais alguns minutos de paz. Sonhando com lembranças de uma vida ao lado de um homem passado. Que o prazer dos sonhos me sustente por mais algumas horas, que seja. É neles onde encontro forças pra chegar até a próxima noite.

Espero por um dia em que eu acorde e saiba viver só. Em que meus braços me acalentem como os dele faziam, e que meus pés me levem onde eu deseje estar. Um dia onde eu olhe meu reflexo em algum lugar, em um momento qualquer, e reconheça a imagem de uma mulher que sou e nasci pra ser.

Silêncio minha mãe! Que amanhã recomece o seu canto, as suas palavras ao meu ouvido, até a noite seguinte, e assim por diante, até o dia em que, erguida, cantarei seus versos pra outra mulher. Seguimos assim, descobrindo que ser mulher é gerar e dar vida aos seres, seja essa vida em palavras, em magia ou em filho. Mesmo sem gerar o filho de meu homem, eu gero vida pelos caminhos e buracos dos meus passos. E isso ninguém apaga ou me tira... Agora silêncio! Que eu sonhe por uma noite!

Nenhum comentário: